Acaso acontece.

Peças raras.

outubro 14, 2011
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Ele olhava o forro de madeira do teto e fumava um cigarro em estado de estase. A noite fora perfeita, divertiu-se com os amigos e encontrou a Gláucia. Já havia trocado uns beijos no carnaval, mas nada além. Ele estava muito afim, mas não havia encontrado uma oportunidade e ela era muito assediada, sempre com alguém na cola. Era muito bonita, morena de cabelos longos, coisa rara nos dias de hoje, rosto anguloso, de maxilar marcado e sorriso largo.

Enquanto esperava o café pensava na sua sorte grande. Despretensiosamente começou um papo com ela sobre a cidade e o crescimento desordenado… ela entrou no assunto com entusiasmo. Falou sobre questões urbanísticas, criticou a prefeitura e explicou sobre os problemas de circulação pela cidade. Não é só um trânsito caótico, é uma cidade sem planejamento para as pessoas caminharem, pedalarem, ou mesmo viverem. Gente na rua é sinônimo de problema para a prefeitura e para a PM. Ela disse as últimas frases com força, quase um manifesto político.

Café, leite, mamão com iogurte e granola, pão com manteiga, tudo arrumado em uma grande travessa. Agradeceu com beijos e carícias. Comeram com calma, falaram pouco, trocaram muitos olhares, era um momento de contemplação e degustação. Estavam se experimentando, se gostando e percebendo o tanto que tinhamem comum. Elelembrou do tempo de baixa estima em que sonhava com ela e tinha uma certeza: ela nunca lhe daria bola, era muita areia para o seu caminhão.

– Ah, vou pegar o lap top para a gente ver algumas coisas. Tem um site de uma amiga que é muito legal. Tem haver com o papo de ontem, sobre a cidade, ocupação de praças, estas coisas de quem não quer viver em gaiola.

– Legal, quero ver!

– Olha que legal estas fotos que ela fez das calçadas. É aquela idéia de ver bichos em nuvens, sabe? Só que é ver formas nas calçadas remendadas. Olha se não é uma andorinha aqui nestas pedras portuguesas?

– Oh é mesmo.

Depois de muitas fotos e conversas sobre a cidade, que parecia ser o objeto de amor eterno dos dois, ele sugeriu:

– Posso lhe mostrar o meu blog?

– Eu já conheço.

– É mesmo?

– Sim. Leio toda semana.

– Que massa! E tem gostado? Pode criticar de verdade. Gosto de críticas, me ampliam os horizontes.

– Mesmo se você não gostar do que eu vou falar.

– Não é uma questão de gostar ou não, é uma questão de abrir o olho e entender o seu olhar.

– Então ta! Não vá dizer que não lhe avisei e muito menos ficar chateado.

– Pode falar! A minha curiosidade é enorme.

– Gosto do jeito como você escreve, assim, livre, despretensioso, com uma certa delicadeza e contando da realidade de hoje, curto muito isso. Mas falta alguma coisa, sabe? Falta um pouco de Pedro Nava em você.

– Como assim?
– Falta transformar as palavras numa espécie de realidade inventada, descrevendo o nosso cenário. Nossos casarões que estão sendo demolidos na savassi, as avenidas alargadas a força, as praças higienizadas, você precisa tocar a vida da cidade.

Enquanto ele escutava acompanhava a trama da madeira no forro do teto. De que ano seria aquilo? Deviam restar poucos na cidade! Peças raras, ela e o teto.


José X Nina.

novembro 23, 2010
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José acordou no fim da tarde com uma preguiça enorme! Esticou os membros superiores, depois os inferiores e por fim a coluna em uma espreguiçada digna de rei. Penteou o bigode e enquanto tirava a remela do olhou viu Nina passando na calçada. Toda fogosa era pura alegria e ele por um momento acreditou nisso.

Momentos antes Nina estava ansiosa, já era quase seis da tarde e a Lu iria chegar para passear com ela. Quando a porta abriu Nina já sabia que era Lu e foi correndo encontrá-la. Ganhou um cafuné na cabeça e uma massagem na barriga. Adorava aquilo e às vezes se mijava de emoção. Esperou Lu trocar de roupa, passar no banheiro e depois na cozinha onde sempre pegava uma fruta. Pegaram o elevador e logo já estavam na rua, o destino era a praça no quarteirão de baixo.

A única coisa que fazia José levantar, mesmo depois da espreguiçada, era a certeza do banquete que viria. A chuva que caiu na madrugada anterior e chegou até o meio dia, inundou muitos bueiros, ratos desabrigados eram um prato cheio. Apesar que, José preferia filhotes nos ninhos, ou caídos deles, a chuva realmente trazia a fartura. Era só esperar e logo escutaria o pio de algum passarinho indefeso, o jardim da praça era perfeito.

Nina tinha um pouco de medo dos gatos da praça, eles tinham ar misterioso, andavam pelos cantos, não tinham nada e sabe-se lá o que comiam. Uma vez ela chegou a sentir pena e pensou ser privilegiada no mundo, tinha casa, cama, comida e muito carinho.

José levantou e se esgueirou até o pé de manga, lá havia alguns ninhos. Subiu na primeira galha e ficou escondido só na espreita. Quando viu Nina voltando com a sua dona, pensou: pobre coitada, vive na coleira, não tem liberdade. Malditos humanos que escravizam os animais. Não teve dúvida e com um pulo preciso derrubou a dona de Nina, mais rápido ainda tirou-lhe a coleira do pescoço e fugiu.

Nina em estado de choque mal latia, tentou um chorinho, mas quando viu a sua dona no chão, só conseguiu dar umas lambidinhas em sua mão, tentando dizer: eu estou bem. Aquele gato bandido já se foi. Vou protegê-la


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